A Dama: linda donzela?


A vida é engraçada, não é?
Cheia de encaixes e junções e depois muita coisa para voltar para o lugar.
Num dia, inverno rigoroso; no outro, 40º de sol na sombra.
E tudo vai ganhando seu devido colorido ou descolorindo.
Há o que se desbote e o que se tinja.
O que não dá para fazer - não com a raça humana - é mutar: isso só nos filmes.
Então podem pedir tudo, menos para que um seja o outro!
No mundo da fantasia o príncipe se eternizou sapo, e de resto: todo o principado foi pra lama.
Perderam o sentido, frases escritas.
E de nada adianta o encantamento se o feitiço pega na própria bruxa.
Escolha feita: eis a bola da vez!
Adversário em vantagem com o campo e a bola, e você...
Melhor ir para o chuveiro, pois o banco de reservas lotou e...
E você não precisa se prestar a esse papel.
Quebrou-se o espelho da alma.
E nesse caso: os anos de azar ficam com quem?
A plebe é rude e o clero inalcançável.
Enquanto isso o fiel se fode e o pagão aplaude.
Nos cantos da cidade...
Em sombreados ou sobrados, em vilas ou vielas
Todas elas - sem exceção de nenhuma -
Tecem os fios que contam a história,
Desde a galinha Dan gola com suas mazelas,
Até as filhas delas.
O que vem para somar, acaba por passar despercebido.
No arrepio frio, o banho gelado encolhe o saco.
E o gemido do homem despedaçado que chora,
Hoje - ainda agora, com uma hora menos -
Já tendo desaprendido a dançar,
Insiste em agonia que decidiu, nele, se instalar.
O tempo já deu: é o fim.
O Rei Momo, o gordo bonzinho, fora trocado
Em seu lugar: o majestoso Valete, mal-humorado.
A Dama, que deveria ser a linda donzela...
Mostrou-se “Cruela”.
No limar do prazer de sentir dor, o que vos fez autor,
Deveras enlagrimou a fronte
Demasiado embabacado, preferiu
Desfazer-se do sim e atravessar a ponte
E lá do outro lado no arco-íris errante
O pote de ouro vazio encontrou.
Cansado de colher as desilusões dos amores,
Sentado, na beira do lago novamente chorou.
De chorar, pôs-se a rir da vida.
Lembrou do desencaixe que causou ferida
E da comédia nem tinha começado ainda.
Sem saber como terminar o dia e cada coisa que viria a fazer nele,
Emudeceu o riso e o pranto.
Se a vida é desencanto, o que se fez canto se desfez.
E agora não é mais riso nem pranto: é nudez.



Raffael Silva

"Me ensina a não andar com os pés no chão"


Era apenas mais um dos comuns dias de aula e trabalho duro – logo cedo de pé, e já tarde exausto - tendo em uns poucos minutos todas as atividades diárias repensadas na cabeça enquanto se aproxima da estação da linha férrea. Na escada - molhada pela forte chuva, de uma comum “louca estação carioca” atemporal - um sombrio torpor invadira todo o seu corpo quando se deparou com um papel dobrado de letra muito familiar.
Olhando, aos cantos dos olhos, viu que na ecoante e vazia estação os poucos presentes não lhe depositavam o olhar. Esgueirou-se a pegar o papel e não resistiu, logo em seguida, por lê-lo.
Ele não constatou nada naquele texto de sentimentos expostos - não era identificável. Não dizia ser uma carta – só sabia que todo o seu corpo ficara paralisadamente arrepiado ao ler cada uma daquelas frases.
“Ela virou meu mundo de cabeça para baixo. Coloriu meus dias pintados de preto e branco. Trouxe luz e dissipou a névoa perfumada que me cercava. Seu olhar me tira o ar e seu sorriso me emudece. Estático, quase que flutuo em tua presença e nem noto. Teu beijo... Ah, teu beijo! Quisera eu poder tocar com suavidade teus lábios com os meus! Se suas mãos quando tocam nas minhas, sua voz quando me chama pelo nome já me estremecem, que dirá teu beijo?
Uma convulsão de sentimentos me atormenta e me inebria. Nada sei; a não ser que me apaixonei. Quando e como - nessa louca jornada de ter apenas te visto - não sei bem dizer ao certo. Mas a lembrança de seus dedos deslizando a franja ruiva para de trás das orelhas quando, pela primeira vez, simultaneamente, nos olhamos, não sai de meus sonhos, desde aquela quinta-feira!
Como gostaria de ter a coragem de dizer que esse nada que sou gostaria de ser tudo para você, e quanto medo tenho de ser repelido como um inseto.
Os valões que já estive ainda podem tentar manter sua influência sobre mim. Mas, na última vez que os visitei: tudo que mais queria era o deleite de sua companhia. A cada minuto, a cada passo, por todo canto desejei estar na limpeza do aconchego do lar e logo poder olhar a única foto que tenho de ti e fazer valer minha noite. De nada adiantavam os flashs, se minha luz não estava comigo.
Quando te vejo a conversar com outro, prefiro virar-me: a ânsia de voar no pescoço dele e gritar que eu a amo; mandando-o manter a distância e diminuir os risinhos fogosos poderia me levar a um ato imperdoável por você e por mim mesmo.
Não sou capaz de matar uma mosca se quer nessa vida, mas por você eu me daria o trabalho de até criá-las, se fosse preciso.
Quero que me note, que se permita me ver, mesmo que molambento, como estou. E que possa essa imagem manifestar, em você, o encantamento que a sua causou em mim.
Queria conhecer teus gostos e cantar para ti a tua canção preferida, presentear-lhe com a edição nova do livro que mais gostou de ler. Mas sem o desejo de comprá-la: que me entenda bem! Pessoas como você - anjos que amam – transcendem os valores mundanos, humanos e sociais. Vocês perpassam o místico e nos acrescentam ainda que imóveis.
Eu - tolo - transformei isso tudo em paixão. Pedi ao mágico que ao ‘fim do espetáculo’, não deixasse meu corpo estirado (por conta da mágica que deu errado) no chão da arena, largado, e que o enfurnasse na cartola junto ao coelhinho e ao pombo. Para que ao público a errante mágica fizesse sentido, era melhor fingir que tudo fazia parte do teatro e que me deixasse então na mão do palhaço, pois esse saberia o que fazer.
Às vezes, me pego a pensar em teu nome e os mais belos circundam minha mente:dos mais doces sabores às mais cítricas frutas.
Em pouco tempo posso dizer que te devo muito: ‘você salvou a minha vida’!
Teus pés fincados na rocha me ensinaram a tirar os meus do chão, nas necessidades.
O que falta para você estar ao meu lado? Seu coração bater por mim, não é verdade!?
Eu te espero (um mês, um ano ou dois) quanto tempo for?!
Que o marcador de páginas dos próximos capítulos marque sempre as páginas que tenham seu nome; e se depender de mim, a partir daquela quinta feira, serão todas.
Mas como nem tudo é como se quer ou deseja, e todos sabem bem disso: ainda vivo o anseio de ser seu.”
Ainda trêmulo se punha a imaginar a fascinabte mulher da carta. Por falta de firmeza já também nos pulsos, essa voltara ao chão; enquanto que imediatamente o trem pôs-se à estação. Duas alternativas: correr e pegar a folha que longe estava ao vento ou embarcar e permitir - quem sabe- que a dona da inspiração deveras encontrasse. No desejo maior de chegar a casa, seus pés deram mais um passo e pela janela do trem, que partira, nada mais ele vira.

Raffael Silva